quarta-feira, março 16, 2011

Eu li o livro!

  ESTEIROS

Soeiro Pereira Gomes (1909-1949) retrata, de forma “nua e crua”, neste belo romance, uma realidade na qual ele próprio foi encenador e actor. Uma realidade vivenciada pelo autor, ele próprio representante de uma geração verdadeiramente à rasca mas empenhada e comprometida numa transformação social consubstanciada em valores de liberdade, igualdade e fraternidade.
Foi com enorme satisfação que voltei a ser companheiro e cúmplice de aventuras e desventuras de um grupo de “garotos que parecendo homens nunca foram meninos", na sua luta trágica contra a miséria e a opressão desumana, escravos da soberba e da indignidade de uma sociedade submetida à exploração capitalista. Operários-meninos dos telhais à beira dos esteiros do Tejo: Gineto, Gaitinhas, Malesso, Maquineta, tantos outros, crianças miseráveis que nos dão lições de humanismo e de solidariedade comoventes. Rapazes descalços, maltrapilhos e analfabetos, órfãos do mundo, que pedem esmola, roubam fruta “para saciar a fome e a sede de vingança” e amortalham os sonhos de meninice sofrendo as agruras de uma vida dura e terrivelmente cruel, sujeitos à dureza do trabalho quando o conseguem arranjar, apesar de tudo – sonham. Sonham como meninos, na feira das ilusões ao som da música de um realejo estafado: “Linda música – exclamou Gaitinhas. (...) Fazia-o esquecer a doença da mãe e os sapatos rotos. O cavalo galopava no espaço, através das estrelas, e ele levava um sorriso nos lábios(...).. O carrossel parou. Mas a alegria da viagem ficou ainda a bailar nos seus olhos.”

A escola, para eles era uma miragem só acessível aos meninos como o Arturinho. Cruel destino e desilusão profunda a do João, sua mãe doente, ele teve que ir “ganhar a vida” e esquecer o sonho, de continuar na escola, ele que segundo o seu mestre-escola “havia de ir longe…” Seu pai escrevera, lá de onde andava emigrado ! “…manda o rapaz para a escola, sem instrução será um escravo ou um vadio…” Sua mãe impotente pensava neste dilema, nesta triste sina de quem pouco ou nada tinha “… escravo ou vadio… antes escravo, porque o vadio perde-se e o escravo liberta-se! “.

Com eles, descalços e rotos, mendigamos “pão por Deus” no dia de todos os Santos - dia de todos os pobres! Magicamos, “como generais concebendo ofensivas”, o assalto às laranjas da Quinta Alta, embarcamos no bote com Gineto, pela madrugada, depois de comer uma malga de caldo requentado, rio abaixo, embalados num mar de vagas tenebrosas sob as nuvens negras, recolhendo as sensações de uma viagem temerosa. Somos gajeiros de navio demandando paragens estranhas, entre perigos e escolhos para resgatar o mundo, náufrago num mar de lama! Depois vem o Verão e voltamos a ser escravos no telhal…mas os sonhos não morrem, o sonho comanda a vida como diz o poeta: ”Gaitinhas em breve irá partir, correr os caminhos do mundo, à procura do pai. E, quando o encontrar, virá então dar liberdade… e mandar para a escola aquela malta dos telhais - moços que parecem homens e nunca foram meninos”.

Benjamim Alves Gonçalves

GOMES, Soeiro Pereira - Esteiros. Lisboa: Editorial “Avante” SA, 1979. ISBN 972-21-0815-8

Sem comentários: